8 de nov. de 2010

Casualidade

Era domingo, Ela caminhava distraída, como de costume, pela rua que levava à biblioteca municipal. Sim, era domingo. Sabemos que não é comum uma biblioteca se encontrar aberta em pleno domingo. Antes que você crie suposições para elucidar o estranho fato, exclua a ideia de que o povo dessa cidade é o maior amante de literatura que existe na face da terra, lá, também, as pessoas preferem acessar redes sociais a ler livros. A biblioteca é aberta aos domingos por Dona Lurdinha, antiga e única bibliotecária que a cidade teve, ela tem aproximadamente sessenta e cinco anos, solteirona mau humorada daquelas que, quando algum leitor lhe pede ajuda para procurar um livro nas infinitas prateleiras ou uma dica de leitura, apenas ergue o olhar sobre os óculos de lente grossa e faz perguntas curtas, que inibem a maioria dos leitores perdidos, típicas de quem julga que essas perguntas são profundamente irritantes e idiotas, de pessoas que não sabem o que estão fazendo alí. Apesar do mau humor, Dona Lurdinha, adora quando Ela chega para a dose de leitura dominical. Quase não conversam, biblioteca é lugar em que o silêncio prevalece, mas ficam satisfeitas com a presença mútua.
Como em qualquer cidadezinha aos domingos, as ruas estavam desertas e nem os cachorros sem dono davam o ar da graça. Faltavam cinquenta passos para que Ela chegasse à biblioteca e seu olhar, que estava hipnotizado pelos desenhos que o tempo fez na calçada desgastada, foi atraído vagarosamente por uma força que veio sabe-se lá de onde. As pernas pararam de andar, em sinal de obediência. Seus olhos caminharam pelo calçamento mal feito da rua e atravessaram-na até o outro lado, logo em seguida encontraram um par de botas antigas, viradas em sua direção. O olhar se fixou nas botas por um instante. Começou a subir, se deparou com uma calça de pano vagabundo. Um pouco mais para cima, uma camisa xadrez, cabelos grandes emaranhados, óculos de armação exagerada, um nariz fino, barba por fazer, uma mochila nas costas: eis que estava formada a figura de um sujeito estranho. Agora, o que a hipnotizava não eram os desenhos do chão mas essa figura que, ao mesmo tempo, a encantava e assustava. Para piorar, Ele a olhava, há algum tempo, talvez. Ela ficou tonta, as vistas turvaram, não conseguia controlar as várias sensações que a chacoalhavam por dentro. Havia apenas vinte segundos que Ela tinha avistado aquele ser mas já o achava o cara mais interessante que tinha visto. A atração, inicialmente, era somente pela figura. O ser que a habitava Ela ainda não conhecia.
O silêncio foi quebrado por uma expressão tímida que Ela proferiu:
_ Oi!
Ele não respondeu. Ela esperou por mais alguns instantes na expectativa que recebesse alguma resposta verbal ou facial mas nada foi apresentado. Quando ensaiava os primeiros movimentos para continuar seu caminho Ele surpreendeu:
_ Atravesse a rua.
_Venha você – disse com firmeza para dissimular o que seu corpo já tinha entregado.
_ Pelo que entendi, seu olhar agora há pouco disse que me deseja, então que você venha para o lado de cá.
Nesse instante o rosto dela ruborizou, sentiu um calor insuportável na face, Ele tinha razão mas Ela manteve o disfarce:
_Meu olhar era de susto, não de desejo.
_Se é assim, então continue seu caminho.
Ela não conseguiu se mexer. As pernas pareciam acorrentadas ao chão. Virou o corpo de frente para Ele. Parou. E deu os primeiros passos em direção à outra calçada. Quando já estava lá, olhou-o fixamente nos olhos que não diziam nada. A verdade é que Ele sabia dissimular bem, porque uma vontade de beijá-la tomava contado do seu ser e Ela ainda não havia se percebido nenhum sinal de denunciasse. Mais um instante de silêncio, Ele não conseguiu resistir e a beijou. Foi um beijo lento.
Após o beijo, Ele não resistiu e perguntou o óbvio:
_Porque disse que não estava me desejando.
_Não sei, talvez por hábito, não gosto de reconhecer minhas fraquezas. Acho que os seres humanos são assim.
_Não, as mulheres são assim.
_Tão pouco tempo e já tenho a primeira decepção: és um machista.
_Não. Eu disse que as mulheres são assim porque todas que conheci tinham e têm essa mania.
_De onde você é?
_Sou dessa cidade.
O papo ultrapassou os limites do domingo e se estendeu por boa parte da segunda-feira num velho bar da cidade. Ela não foi à biblioteca nesse domingo. Dona Lurdinha esteve ainda mais impaciente com os leitores perdidos. O que se sucedeu com o casal, após esse primeiro encontro, eu não sei. O restante desta história são detalhes muito minuciosos que fazem parte da intimidade do casal e não devem ser contados num texto tão curto como esse, é melhor que imaginemos o que aconteceu ou fim teve, se é que ela já chegou ao fim.

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